quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Meu reencontro com Hannah Arendt

"Já que o que nos interessa é basicamente a violência, devo fazer uma advertência quanto às tentações de um mal-entendido. Se encararmos a História em termos de um processo cronológico contínuo, cujo progresso, ademais, é inevitável, a violência na forma de guerras e revoluções poderá parecer constituir-se na única interrupção possível (...) É a função, entretanto, de toda ação, distinta do simples comportamento, interromper aquilo que de outra maneira teria prosseguido automaticamente e portanto de forma previsível." (ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília: Unb, 1985, p. 17)

Eu conheci Hannah Arendt no primeiro ano de faculdade, por causa do Tércio Sampaio Ferraz e suas referências a obra "A condição humana".  Por sinal, este é um livro que eu comecei a ler na época e até hoje não terminei. Depois disso, Arendt e eu passamos um bom tempo separados. Certamente, muito mais por fanfarronice minha do que por falta de interesse dela. Mas, após quatro anos, o destino tratou de promover nosso reencontro. E que saudades, devo dizer.

Reencontrei Arendt nesse livro, com cuja passagem iniciei esse post. Chama-se Da violência (esse link contém o texto digitalizado para download) e nas palavras de minha amiga Elaine Pimentel, procura discutir a violência em sua essência. Apesar da proposta aparentemente bem densa, o livro é bem tranquilo e até gostoso de se ler. Tou recomendando pra quem se interessar. Eu queria chamar atenção, neste post, justamente para a reflexão que surge do excerto da obra, lá em cima.

Durante muito tempo, eu acreditei que a violência poderia se legitimar no âmbito da ação política, especialmente, diante da relação entre oprimidos e opressores, como uma resposta daqueles para estes. Na verdade, eu sempre acreditei que esse seria o único campo de verdadeira disputa possível na atual configuração das condições objetivas da realidade social. Minha boa amiga Arendt tem me feito repensar esse ponto de vista, através da problematização que ela faz da apologia feita por Sartre e Fanon justamente ao uso político da violência por parte das massas oprimidas como único caminho para que os indivíduos componentes dessa massa possam se "tornar homens". Em linhas gerais, e salvo uma leitura apressada de minha parte, Arendt propõe que um poder tomado pela ação violenta tende a ser instrumentalizado, quando de seu exercício, na reprodução de práticas igualmente violentas. Seria trocar seis por meia dúzia. E aí, a história do século XX estaria repleta de exemplos e mais exemplos de tal perspectiva. Quais os limites da legitimidade de uma ação política que tome como principal base a chamada contraviolência (violência praticada contra a violência)? E qual a possibilidade de tomada do poder político, histórico instrumento de exercício e legitimação da violência, sem a articulação de uma ação violenta direcionada a sua destruição? São questões sobre as quais não mais consigo me posicionar com segurança. 

É que - e posso até estar sendo tolo nessa construção - quem prática um ato de violência, via de regra, arroga para ele alguma justificação. O velho coronel que mata, sem pestanejar, os seus inimigos ou o marido traído que se sente no direito de tirar a vida da esposa  acreditam, sinceramente, estar praticando um ato violento legítimo. Não é diferente no jogo político. Nesse âmbito, a questão é que se todos os que se encontrarem em situação de desvantagem resolverem arrogar para si o legítimo exercício da violência, permaneceremos neste círculo vicioso de banalização e generalização da violência como sinônimo de exercício e disputa do poder político. Concordo com Arendt quando ela pontifica se fosse verdadeira tal perspectiva, a vingança seria a cura maior para nossos males. E, efetivamente, não o é.

É claro que a reflexão de Arendt sobre poder e violência, certamente, não está livre de problemas. Ao propor o poder como um espaço de construção de um consenso livre e a instrumentalização desse espaço na defesa dos interesses dos indivíduos que construiram o aludido consenso, ela deposita, na minha humilde opinião, demasiada fé na boa vontade dos homens, edificando uma categoria que não reflete bem as contradições da natureza humana e da dinâmica social. Seu grande mérito, no entanto, é propor uma distinção clara entre Poder e Violência. É uma distinção, por incrível que pareça, minoritária no âmbito do pensamento político ocidental: o poder - diferente do que é difundido seja no senso comum, seja na produção científica - não está marcado ontologicamente pela violência. Basta ver que mesmo os regimes totalitários mais ferrenhos necessitam articular o mínimo de consenso social, apesar de enorme estrutura de intimidação e terror - não precisamos ir longe, basta lembrar da Ditadura Militar e de suas ufanistas campanhas de propaganda.

A questão, voltando à citação inicial, é que a violência é o único caminho que nos é apresentado como possível. Nesse sentido, não estamos habituados a conhecer ou refletir sobre os conflitos políticos que foram solvidos pacificamente, mas tão-somente aqueles que desencadearam em violência e em guerra. O nosso processo de aculturamento nos ensina a questionar "por que guerra?", mas nos esquece de ensinar a questionar "por que paz?". Basta-nos, nas palavras do professor Walter Matias, refletir "como evitar o mal", e não "como fazer o bem". São reflexões
aparentemente  idealistas, mas que, nesse momento, têm feito bastante sentido para mim.
Arendt afirma que a violência sempre necessita de instrumentos. Tais instrumentos são conhecidos de cor e salteado pela humanidade. Proponho então que a paz também necessite de instrumentos para se concretizar. O grande desafio de nosso tempo, penso eu, seja encontrar tais instrumentos, sob pena - como lembrou o mesmo prof. Walter Matias sobre uma passagem de István Mészáros - de termos muita sorte se nos restar tão-somente a barbárie. 

 

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