quinta-feira, 15 de julho de 2010

Judicialização da política: um exemplo e um olhar

A imprensa alagoana noticiou, no último dia 13, que o Ministério Público Eleitoral em Alagoas impugnou 383 dos 438 requerimentos de registro de candidatura para as vagas que serão preenchidas no pleito de outubro próximo. Trocando em miúdos, foram identificadas irregularidades em quase 90% dos pedidos, dentre os quais os requerimentos de TODOS os candidatos à Chefia do Executivo estadual. Irregularidades de toda sorte: desde a ausência de documentos exigidos pela legislação eleitoral até as impugnações motivadas pela vigência da nova e festejada Lei da Ficha Limpa.

A divulgação de tais números causou diferentes reações no seio da sociedade alagoana. Delas sobressai-se, sem dúvida, uma certa sensação de vingança e justiça contra aos maus políticos. Uma reação que se justifica diante do vergonhoso e infamante histórico de escândalos registrados no cenário político alagoano.

Seria leviano de minha parte tentar estabelecer alguma discussão mais detida acerca da adequação e da necessidade de tantas ações de impugnação da registro de candidatura (AIRC) promovidas pelo MP Eleitoral. Não conheço o mérito de todas as demandas, por óbvio. No entanto, uma coisa posso sugerir com grande dose de certeza: a grande maioria dos casos impugnados será solucionada através de simples diligências, pequenas retificações. Ou seja, trata-se de situações que poderiam ser apontadas pelo MP Eleitoral em sede de parecer, que é dado em todos os requerimentos de registro de candidatura, independente de impugnação.

Na minha opinião, a propositura da AIRC, em casos simples e que fatalmente serão sanados sem a efetiva impugnação do registro, só torna mais longo o processamento do registro de candidatura (pois impõe a abertura de prazo de defesa para o candidato, por exemplo), abarrotando a (já abarrotada) Justiça Eleitoral - o que tira o foco de demandas realmente complexas, como casos que envolvem inelegibilidades, por exemplo. Logo, o fato de ser juridicamente possível, não torna a AIRC recomendável para todos os requerimentos de registro de candidatura.

Para além dos tecnicismos processuais, acho que a situação narrada constitui um exemplo paradigmático daquilo que costumam chamar, especialmente na literatura do Direito Constitucional (vide, por exemplo, o excelente Prof. Gilberto Bercovici, da Universidade de São Paulo), de "judicialização da política" - isto inclusive foi levantado no Twitter pelo prof. Adriano Soares da Costa (@adrianosoares69). Trocando em miúdos: o Judiciário, ultrapassando os limites consagrados pelo bom e velho princípio da separação de poderes, propõe-se a dar a última palavra em questões de caráter eminentemente político, ou seja, de responsabilidade exclusiva do titular do poder soberano (o povo) ou seus representantes legalmente investidos. No Brasil, a judicialização (ou não) da política é um debate super atual (e tenso) no campo da efetivação de direitos fundamentais de caráter prestacional através das chamadas políticas públicas. É aquela velha história: até que ponto podem juízes, que não são eleitos pelo povo, imiscuirem-se nas decisões tomadas pelos representantes eleitos pelo povo?

Mas voltando ao assunto, adianto desde já uma objeção bastante provável ao que expus no parágrafo anterior e que me servirá de ótimo amparo para prosseguir em meu raciocínio: ora, existem leis que estabelecem requisitos e procedimentos para o requerimento de registro de candidatura. O descumprimento de tais leis impõe a necessidade de manejo da cabível ação judicial, certo?

Certíssimo. Não nego a necessidade de ações eleitorais. Tampouco de uma Justiça Eleitoral mais atuante. Muito menos a necessidade de um Ministério Público combativo - cuja função basilar, por sinal, é a defesa do regime democrático. Minha questão (e que não é só minha, claro) é um tanto diversa, talvez um pouco abstrata: até que ponto a democracia e a soberania popular podem ser reduzidas e esvaziadas em meros princípios/regras de direito?

Se as eleições não encerram totalmente aquilo que devemos entender por democracia, evidenciam - sem dúvida - o que nela existe de mais simbólico, mais importante historicamente. O processo eleitoral, embora regido por normas jurídicas (e deve sê-lo de forma estrita e minudente), traduz-se numa questão delicada. Delicada porque mexe com os fundamentos da estrutura de poder inerente ao projeto de sociedade definido para o Brasil: a vontade soberana do povo.

Na minha opinião, quando o Ministério Público Eleitoral tenta obstar judicialmente a candidatura de quase 90% dos cidadãos que apresentaram requerimento de registro de candidatura - a maioria das impugnações, suponho, por irregularidades simples e facilmente sanáveis - há uma interferência clara no âmbito da soberania popular, no sentido de impedir quase a totalidade daqueles que desejam exercer as funções de representação popular, mesmo aqueles cujos pedidos de registro de candidatura de vícios meramente formais, tolos. O melhor a fazer pelo MP Eleitoral - inclusive no melhor interesse do regime democrático - seria garantir a participação da maioria dos interessados, exigindo o mero reparo dos vícios simples, meramente formais (sanáveis, portanto) e deixando as impugnações apenas para os vícios realmente insanáveis, como a condenação por inelegibilidade ou incidência da Lei da Ficha Limpa.

A lógica do jogo democrático-eleitoral é essa: assegurar a participação da maioria de interessados, permitindo ao povo que eleja soberanamente os seus representantes. É por isso, por exemplo, que a própria Lei da Ficha Limpa também traz uma faceta problemática: apesar de se tratar de um (louvável) fruto de um projeto de lei de iniciativa popular (mecanismo de democracia direta!), é realmente preocupante que o atual estado de consciência política de nosso povo ainda exija que um texto legal nos indique quem não se encontra a altura do desafio de exercer dignamente um mandato eletivo. Isto deveria ser uma constatação simples aos olhos do eleitorado, um interdição trivial: não podemos eleger indivíduos envolvidos em certas ilicitudes.

Penso que a atual apatia que campeia a esfera da política numa jovem democracia, como a brasileira, indicando um processo de verdadeira profissionalização e até mesmo mercantilização do agir político, é um fenômeno corolário dessa percepção de que o Judiciário pode tudo, servindo de verdadeiro timoneiro, guardião da vontade soberana do povo. O povo não precisaria ir às ruas, organizar-se, reivindicar, resistir - o Judiciário resolve tais questões com imparcialidade e sem sobressaltos. Tal compreensão, diga-se de passagem, é uma fantasia assombrosa, especialmente quando refletimos acerca das mazelas do Judiciário brasileiro, que vão desde o elitismo e conservadorismo exarcebados até escândalos de corrupção que não se distanciam - em nada - daqueles verificados em nossas Casas Legislativas e Palácios de Governo. Mesmo que tais mazelas não existissem, caminharíamos não para um regime democrático, mas para uma ditadura judicial.

Precisaria de mais uns 10 posts para reforçar de forma satisfatória a posição aqui exposta. Mas mesmo assentando-a em bases frágeis, parto para o debate - o que é, por sinal, o meu objetivo. Sei que posso estar romantizando a ideia de democracia ou de soberania popular, mas é que me apeguei de forma muito particular a uma passagem que li no meu livro de História da quinta ou sexta série da educação fundamental: "A democracia está longe de ser perfeita. Mas é o melhor regime político já inventado pela humanidade" (ou algo do gênero). Logo, se queremos uma democracia forte (a nossa ainda engatinha, inspirando muitíssimos cuidados) precisamos solidificar as bases que foram lançadas em seu nascedouro. Para além da necessidade de um Judiciário ou qualquer instituição que faça as suas vezes, é preciso que seja exercida a soberania do povo, com todos os seus defeitos e equívocos. Não apenas nas urnas, diga-se de passagem, mas todo dia. Um processo lento e que deixará muitas sequelas, afinal, a maturidade política de um povo não é alcançada do dia para noite.

PS: Minha querida amiga Micheli Mayumi aponta que a frase citada em meu livro de História da educação fundamental é inspirada (ou eu lembro totalmente diferente) em uma passagem de Winston Churchill: "Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos". Fica o registro. Nada como uns amigos espertos! =)



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