terça-feira, 13 de julho de 2010

Refletindo Columbine

Depois que assisti "Capitalismo: uma história de amor", interessei-me novamente pela filmografia de Michael Moore. Sim, até duas semanas atrás, eu tinha visto apenas um dos filmes-documentários do cineasta de Flint, "Sicko", sobre o sistema de saúde norte-americano. Denuncio, por aí, o meu diminuto conhecimento no que concerne à sétima arte. Merecem ser lembrados aqui os esforços de meu bom e cinéfilo amigo Manoel Bernardino para me retirar das trevas da ignorância neste particular.

Não pretendo, portanto, fazer uma crítica de cinema ou coisa que o valha. Não tenho talento, tampouco acúmulo para isso. Gostaria apenas de compartilhar algumas reflexões que me ocorreram após assistir uma outra obra de Moore, seguramente mais famosa que as duas já citadas, intitulada "Tiros em Columbine" (Bowling for Columbine). Vencedor do Oscar de melhor filme-documentário em 2003, a temática central do filme parte do famoso massacre de Columbine (1999) - onde dois estudantes invadiram uma escola portando um verdadeiro arsenal e, após mais de 900 disparos, mataram doze alunos e um professor - para problematizar algumas das raízes da violência interpessoal, especialmente envolvendo o uso de armas de fogo, na sociedade norte-americana.

Pelo que andei lendo, os ferozes detratores de Moore o acusam - em resumo - de sensacionalismo, anti-americanismo e construir argumentos simplistas ou falaciosos. Olha, até que reconheço alguma procedência de parte dessas críticas. Acho que o apelo para o sensacionalismo existe sim, mas apenas para reforçar um argumento anteriormente exposto. Não vejo algo apelativo, demasiadamente sentimentalóide. Também acho que ele poderia aprofundar melhor certas construções: as constantes comparações dos EUA com outras democracias ocidentais (como Canadá, Japão, França e outras), como se estas fossem ilhas da fantasia e não reproduzissem muitas das mazelas existentes nos EUA, acabam enfraquecendo o poder de persuasáo de alguns argumentos.

No mais, não acho Moore anti-americano. Tampouco acho que ele seja desonesto ou falacioso nos seus argumentos. Penso que ele tem muitos méritos em sua obra. O maior deles, sem dúvida, é como ele explica de forma super didática questões intrincadas e complexas. Acho genial, por exemplo, como ele desconstrói a ideia de que o fetiche militarista dos EUA é motivado pela necessidade de responder a agressores externos com um rápido clipe com algumas das inúmeras agressões patrocinadas pelo poderio bélico estadunidense contra a democracia e a soberania de outros povos. Isso talvez o desonere das acusações, que eu mesmo endossei, de dar explicações simplistas sobre algumas questões. Pensando melhor, talvez Moore compreenda as limitações de tentar discutir questões altamente delicadas em um curto período e com a obrigação de manter a atenção do espectador.

Uma das discussões importantes do documentário, e que particularmente me motivou a este post, diz respeito à questão da cultura do medo como pano de fundo de uma sociedade sobressaltada e que enxerga no outro um inimigo em potencial, prestes a atacar. É o espírito "James Bond" que acaba rondando a todos: atirar primeiro, perguntar depois.

Cultura do medo alimentada, principalmente, pela mercantilização e estetização da violência e do horror, produtos que vendem bem especialmente no âmbito dos meios de comunicação em massa. Cultura do medo que alimenta uma verdadeira indústria que impele ao cidadão-consumidor uma série de produtos e engenhocas com o único objetivo de assegurar-lhe um pouco mais de segurança e tranquilidade - das inocentes cercas-elétricas até o isolamento em verdadeiras fortalezas urbanas. É aquela velha constatação de que a tônica do capitalismo contemporâneo não é produzir objetos para satisfazer necessidades. Trata-se, na realidade, de produzir necessidades para satisfazer objetos. Analisando friamente, há tanta coisa que considero indispensável para sobreviver e que, no fundo, é absolutamente supérflua.

Familiar em relação à dinâmica da violência e da criminalidade no Brasil? Penso que totalmente. Vamos focar um único ponto aqui: a visibilidade midiática que é dada à criminalidade violenta. Olha, é inegável que a violência criminal é um problema SÉRIO a resolver em numerosas cidades brasileiras. É inegável que temos números de guerra e nossos jovens são abatidos como moscas, notadamente na periferia. Mas é igualmente inegável que somos bombardeados, a todo minuto, e em uma proporção dantesca com sangue e horror, como se o assassino estivesse à espreita na próxima esquina - e normalmente, não está. Não é incomum, por sinal, ouvirmos entre nós comentários do tipo: "Não gosto de ver o noticiário. Só passa desgraça!". Nossa sensação de insegurança é muito maior do que o risco efetivo de sermos vitimados por algum crime violento - especialmente quando pensamos na classe média. Uma cidade como a minha, Maceió, onde os homicídios estão concentrados em quatro ou cinco bairros - bem pobres, populosos e afastados, por sinal (uma outra questão que certamente voltarei a discutir no blog) - a sensação de insegurança encontra-se difusa em todas as camadas da população.

Penso (e o próprio Moore sugere isso) que a reprodução repetida, massificada, de tantos eventos de violência sirva, em alguma medida, não só para alimentar um lucrativa indústria do medo, mas para naturalizar, banalizar as práticas violentas. Lembro dos relatos de alguns amigos, com filhos e sobrinhos pequenos, impressionados como crianças de dois ou três anos de idade já identificam como corriqueira a possibilidade de uma pessoa ser vitimada por um disparo de arma de fogo ou que idealizam, em suas brincadeiras, a figura do bandido - com a arma em punho, lógico - atirando contra todos. Cria-se na minha opinião um círculo vicioso: violência que acontece, violência que é reproduzida e massificada, violência que é naturalizada, violência que torna a acontecer. Claro que a dinâmica dos crimes violentosnão obedece parâmetros tão simples. Mas penso que tais constatações não são desprezíveis.

Não estou advogando, por óbvio, que a grande mídia passe a ocultar as ocorrências policiais, os crimes bárbaros ou a tão propalada "rotina de violência". Só acho que uma coisa é informação, outra é espetáculo/espetacularização. Há tanta informação relevante e capaz de reforçar os abalados laços e o espírito de coletividade, de motivar a crença no outro como um semelhante digno de confiança, não um inimigo, e que é sumariamente preterida pela super-exposição (é assim que escreve na nova ortografia?) dos mínimos detalhes referentes aos crimes que "chocam" o país ou a localidade. O mais recente caso do "goleiro Bruno" é um exemplo paradigmático do que estou sugerindo.

Lembrei-me, por ora, de Antanas Mockus e do amigo e colega de MPF, Wladymir Lima. O primeiro, ex-prefeito de Bogotá, propôs à imprensa local - como uma das suas políticas de redução da criminalidade violenta, que dessem menos ênfase às notícias relacionadas a esse tipo de ocorrência. Aparentemente, deu certo (no contexto de uma série de outras políticas, claro). O segundo, combativo e competente jornalista (hoje, analista de comunicação do MPF/AL) defende que a atividade da imprensa deveria assumir feições marcadamente públicas, com todas as prerrogativas que são inerentes a quem desempenha funções públicas. Uma proposta muito interessante, pois asseguraria independência efetiva à atividade jornalística.

Para além de demonizar a mídia e os meios de comunicação de massa, é preciso propor que eles exerçam, de forma escorreita, o seu papel no jogo democrático. A imprensa livre é um dos mais importantes pilares para uma democracia, para a construção de um agir democrático - inclusive nas pequenas coisas da vida. Esperneia-se muito quando são propostas certas modalidades de "controle social" da mídia, com imediata remissão ao fantasma da censura dos tempos de regime de exceção. Mas o silêncio eloquente reverbera, de forma sintomática, quando alguém lembra do controle econômico, da censura das grandes corporações. Seria bom que percebêssemos isso e nos perguntássemos sobre a necessidade de consumirmos tanta violência e horror no nosso cotidiano e a quem isso interessa.

É certo que medo e violência são constitutivos do humano, mas não acho que não haja muito de humanidade nessa paranoia de medo, crime e violência que vivenciamos hoje. Também é certo que nada do que estou dizendo é novidade. Mas aí é culpa é toda de Michael Moore, que me inspirou a colocar tudo isso no "papel".

Um comentário:

Larissa Lima disse...

Narrativa muito bem entrecortada.
Nesse texto você apresenta alguns panoramas sobra a questão da imagem da violência.
A tevê brasileira, por exemplo, foi construída com base em programas policiais. Um interesse que se mantém por vários motivos, sendo um deles um desejo mórbido de justiça e catarse.
O respeito ao ECA feito pelo aparelho jurídico tem diminuido a vida útil desses programas. E no nosso país, a força de lei ainda é mais forte que a acúmulo ético e moral de muita gente.
Violência não precisa ser sinônimo de sangue. Violência é qualquer atentado aos direitos do cidadão. E é disso que devemos ter consciência.